Contemplando a morte no Templo de Pashupatinath



Um corpo chegou numa ambulância e foi carregado até uma parte da plataforma, onde tinha uma rampa, cuja base dava na margem do rio. Este estava mais escasso, as moções ainda estão chegando para enchê-lo de novo, e em suas correntezas poder melhor levar as cinzas. O corpo estava coberto por um manto branco e outro laranja. Foi carregado por homens e colocado em cima da rampa. Um dos homens pegou um pouco d’água de um abertura no topo da rampa e colocou na boca do morto, outro homem pegou água na margem do rio e molhou os seus pés. Aos poucos os familiares iam chegando para se despedir do morto. As mulheres eram trazidas acompanhadas por homens ou amigos da família para colocarem água também na boca... Uma a uma, choravam muito, caiam no chão e eram carregadas depois para longe. Depois desse ritual de despedida e purificação, os homens pegaram o corpo e colocaram num carregador feito de bambu, levando-o até o local de cremação. Um homem foi a frente tocando uma concha. Numas das plataformas, uma pilha de madeiras grossas foi montada para receber o corpo. Uma vez colocado em cima da pilha, um homem com uma pequena tocha de fogo circulou o corpo três vezes. A tocha, primeiro, foi colocada na boca do morto e depois o fogo foi ascendido na base da construção de madeira. O fogo começou a pegar e palha seca foi colocada em cima de modo a ajudar na cremação... Depois que o corpo foi cremado, um homem veio e varreu as cinzas para o rio, jogou água para limpar. A plataforma ficou pronta, assim, para receber uma nova pilha de madeira e o próximo corpo... É assim que um ritual de cremação é feito aqui no Nepal! Ao ar livre, em plataformas livres. Estávamos sentados olhando atentamente do outro lado da plataforma, compartilhando a dor e a simplicidade.

Templo de Pashupatinath, a 40 minutos andando de Boudha (onde fica a Grande Stupa), que contém o crematório, tem um arquitetura de beleza impressionante, e tem permanecido como um símbolo de fé, religião, cultura e tradição. É considerado como o mais sagrado templo hindu de Shiva no mundo, e sua existência remonta a 400 dC. Milhares de peregrinos de todo o mundo vêm para prestar homenagem a este templo, que também é conhecido como "O Templo dos  Seres Vivos", segundo pesquisei no Google.

Eu e André, um brasileiro, nordestino, que mora na Espanha, e estava visitando o Nepal,  quando chegamos no templo olhamos e nos perguntamos, quem poderia nos explicar sobre isso tudo? Bem, Shiva ouviu e de repente um guia apareceu: um senhor nepalês de seus 50 anos, magro, banguela, com os dentes podres, começou o conversar com André perguntando de onde éramos. Descobrimos que ele falava inglês, espanhol, alemão, francês e italiano. Ele deu toda a explicação para a gente em espanhol com sotaque, uau!, e André falou com ele também um pouco em alemão... Uma figura! Ele nos explicou sobre o lugar. E depois pudemos assistir a um ciclo de  cremação.


Pashupatinath é o templo do deus hindu Shiva. O complexo de cremação tem duas alas: a esquerda, de quem está de frente, é para pessoas comuns de várias castas e budistas; a direita, para pessoas importantes. Cada ala tem suas plataformas de cremação. O complexo também tem pequenos santuários de Shiva, que para quem não sabe é o deus da morte e do renascimento, por isso o crematório é o seu templo. Também tem 11 santuários pequeninos de fertilidade onde há símbolos representando Parvati (mulher de Shiva) e Shiva. Um casal que queira ter um filho pode vir a esse local com oferendas para fazer seu ritual de fertilidade. Segundo nosso guia, funciona mesmo. No ritual, resumidamente falando, o marido oferece leite em volta da espera que simboliza Parvati e a esposa bebe desse leite, e depois a esposa oferece, e o marido bebe do leite. Depois o casal vai para casa e fazem kama sutra e a mulher fica grávida. De acordo com Kesab, nosso guia, se o filho é concebido quando o casal estava fazendo uma posição muito difícil do Kama Sutra, ele nascerá mais forte. 

Nosso guia nos informou que antes da democracia havia uma plataforma para cada casta. Para quem não sabe, no Hinduísmo há 4 castas, que são provenientes na cosmologia hindu de partes diferentes de Brahma: os Brâmanes ( vieram da boca e Brahma, e são os sacerdotes e professores), os Xátrias ( vieram das mãos, e são os políticos e militares), os Vaixias (vieram das coxas, e são os mercadores, fazendeiros e artesões) e os Shudras (vieram dos pés, e são os servidores braçais). Há também os sem castas, que não tem direito a serem cremados, foram denominados de párias ou intocáveis, e fazem o trabalho de coletar lixo, espalhar esterco, cavas estradas, etc. Depois da democracia, então se construíram mais plataformas a esquerda, que ficou destinada as todas as castas e aos budistas, e a da direta para pessoas importantes. 

A divisão de castas ainda é muito forte no Nepal e Índia, mas nas grandes cidades da Índia já se observa alguma diferença nessa cultura. Tem sido também o motivo de muitos indianos abandonarem o hinduísmo para serem por exemplo mulçumanos. Buda em sua época foi um grande revolucionário em não admitir castas e tratar todos os monges e pessoas iguais. No livro de Thich Nhat Hanh, “Velho Caminho, Nuvens Brancas: seguindo as pegadas do Buda”, onde ele conta a história do Buda baseando-se nos sutras, há uma passagem muito bonita, quando o Buda encontra um intocável que carregava esterco, chamado Sunita. Ao ver o Buda o homem foge para o rio, pois estava imundo e não queria contaminar o Buda e seus monges. Buda vai ao seu encontro e o convida para ser um monge, chama Sariputra para ajudá-lo a banha e limpar Sunita e o ordena ali mesmo naquele rio. Com esse ato, o Buda criou furor inicial nas castas elevadas daquela localidade, mas mostrou que em seu caminho não havia separação, seu caminho era da senda da igualdade. Sunita mostrou ser um monge muito aplicado e tinha uma reputação de ter um coração muito puro. 

A visita ao crematório foi uma experiência incrível e profunda. Morte e renascimento juntos num mesmo lugar. Espiritualidade manifestada de diferentes formas. Ali mesmo, um pouco depois das plataformas a direita, há cavernas onde os mestres budistas Tilopa e Naropa meditaram. Não escolheram ali por acaso, não é? Contemplando todo o ritual de cremação pude recordar como a vida pode ser tão frágil, e em poucas horas um corpo pode se transformar em cinzas. Para onde aquele espírito terá ido? Qual será seu próximo renascimento? Será que ele sofreu para morrer? Como foi a sua vida até então? Sua vida teve sentido? Minha vida tem sentido? Sua vida tem sentido, meu irmão, minha irmã? Eu estava ali assistindo a morte de um estranho, sua morte não estava separada de mim, sua morte era minha morte. 

Apesar de budista, me vi pedindo ao deus Shiva que concedesse as suas bençãos para que eu pudesse ter condições financeiras para retornar ao Nepal e visitar esse lugar. Aliás o deus Shiva foi o presente da Índia para mim. Vamos dizer assim, um amigo. No budismo não há a crença em um deus criador, e os Budas e Deidades são representações de nossa natureza iluminada. Então, como posso ver Shiva? Sendo um deus que rege os ciclos de morte e renascimento, destrói o velho e trás o novo, acho que é um bom amigo agora que estou voltando ao Brasil (ainda sem data), voltando a atuar como psicóloga, uma profissão que também lida, simbolicamente, com a morte e renascimento. 

Visitando Kathmandu, não esqueça de visitar o Templo de Pashupatinath! Não tenha medo de contemplar a morte dessa forma simples, profunda e bela! 


Juliene Macedo
Maio/2010

Há várias fotos do templo da net, basta pesquisar no Google. Se quiser ver mais fotos minhas, visite meu álbum, clicando aqui. Há também um vídeo sobre o assunto, que uma amiga fez: Shiva - video / Tashi Delek - blog

Diretrizes para se chegar no Templo Pashupatinath de Boudha: saindo pelo portão da Grande Stupa, na rua principal, passar para o outro lado, pegando uma rua a esquerda. Descer a rua até chegar numa outra rua principal, paralela a um rio. Passar para o outro lado da rua, e seguir a direita até onde tem uma passagem, uma ponte, pelo rio, para o outro lado. Nesse lugar da ponte tem também um templo pequeno e acho que é um lugar que foi/é de cremação, e não tenho certeza, mas acho que foi usado como cenário no filme do Pequeno Buda. Passando para o outro lado, segui-se na estrada até chegar num templo hindu. Estrangeiros não podem entrar nesse templo, mas antes da entrada principal dele há outra que dá numa escadaria. Pega-se essa entrada e segue-se pela escadaria. À direita tem um parque de cervos. Continua-se andando por algum tempo, passando por vários santuários de Shiva, até chegar numa escadaria, que descendo vai dá no crematório.